“O PAI DOS POBRES”

20/04/2010

por José Reinaldo do Nascimento Filho

Quando o maldito dia de 24 de agosto de 1954 morria no Rio de Janeiro, nevoento, cinzento e frio, eu acabara de chegar ao meu quarto. Minha filha me desejou uma boa noite, e meu camareiro perguntou se eu continuaria a requisitar os seus serviços: “Não”, respondi. Com os olhos cansados e ardentes, prostrei-me na poltrona, ao tempo que bebia uísque e fumava um charuto cubano. Enquanto a noite ganhava maturidade, minha boca ressequida e a língua áspera suplicavam por um copo d’água; mas neguei a mim mesmo, pois, àquela altura minhas forças haviam chegado ao fim, e seria um sacrifício enorme levantar minha gorda bunda e andar até o barzinho.

De repente, um suave raio do luar, saído não se sabe de onde, projetou-se sobre meus olhos – pensei que ficaria cego – me fazendo lembrar a cidade. Não sei onde encontrei ânimo pra levantar a cabeça que pendia inerte sobre o peito. Olhei pra fora, enfrentando aquela luminosidade opaca, estranha, que descia do céu escuro. No ar daquela cidade tempestuosa uma névoa encardida e porosa corrompia o céu – refiro-me à poluição que dormia sobre mim, à minha volta, envolvendo todo este maldito edifício, esta “capital de latrinas”, composta de enxofre e monóxido de carbono.

“Merda de cidade! Merda de prédio!”, resmungava. Mas resmungar doía. A cabeça latejava. Eu sofria a pior ressaca atemporal da minha vida; não obstante, dentro daquele bloco de granito enroscado, no centro daquelas pedras harmoniosamente contorcidas, havia um plano, ao qual eu me prendi como derradeira solução, desfecho final dessa perseguição que me consumia. Estava decidido: Eu ia me matar.

Eu entrara na fase do estralhaçamento. Sentia-me dentro de uma máquina de moer cana, enquanto alguém gira a manivela devagar, devagar, até cair à última gota do melaço. Assim foi com o meu corpo: moído e triturado. Sentia-me traído pelos meus; humilhado pelos pobres que tanto cuidei e alimentei; trancafiado pela imprensa que tanto sustentei com a minha generosidade; insultado pelos ricos, os mais beneficiados pela miséria alheia. “Cada gota do meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o meu perdão. Aos que pensam que me derrotam, respondo com a minha vitória”.

Neste momento você pode estar se perguntado quais os motivos. Vou dar razões objetivas. Sou de família tradicional gaúcha. Entrei para o exército ainda cedo. Graduei-me em Direito e trabalhei como promotor público. Conheci o amor, e como resultado produzi cinco filhos. Fui Deputado Estadual e Federal. Assumi o Ministério da Fazenda no governo de Washington Luís. Candidatei-me ao Governo do Rio Grande do Sul. “Depois de decênios de esfoliações de grupos econômico-financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei um regime de liberdade social. Tive que renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalhador. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e mal começa esta a funcionar a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o povo seja independente. Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até quinhentos por cento ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de cem milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal  produto. Tentamos defender o seu preço  e a resposta foi uma violenta  pressão sobre a nossa economia  a ponto de sermos obrigados a ceder. Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma agressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo para defender o povo que agora se queda desamparado”.

Hoje entendo perfeitamente o ditado “Um pai cuida de dez filhos; dez filhos não cuidam de um pai”. Eu estava só. Estava no fim da linha, e em excelentes condições de meter uma bala no peito.

Assim, resolvido e reconfortado, ao levantar da poltrona arrastei a carcaça em direção ao barzinho. “Um uísque deve ajudar, nesses momentos”, pensei. Eu precisava de “equilíbrio” pra findar com o meu plano. No quarto estava tudo quieto. Aquela placidez indicava a ausência do camareiro. Dei uma última volta pela sala, olhei para minha escrivaninha, o armário e meus livros – Adeus Graciliano – e, finalmente, olhei para a cama; aquela que seria receptáculo e repouso para esse corpo.

Estirei-me na cama. Espichei o corpo, como se quisesse crescer mais. Relaxei um pouco os músculos. Então fiquei deitado, quieto… Ouvindo o coração… O pulsar das veias… O tilintar do espírito… Dei uma última olhada na carta; mas não conseguia relê-la. Minha razão migrava por locais inóspitos e indeléveis; meu espírito peregrino vagava na imensidão da incerteza e na fugaz certeza do fim. Não tinha ninguém – a não ser minha Colt 32, com cabo de madrepérola.

Após efêmero momento de dúvidas, peguei o revólver parcimoniosamente – até com certa ternura, poderia afirmar. Alisei aquela peça metálica que finalmente acabaria com os meus problemas. Procurei as balas na gaveta da escrivaninha e encaixei uma a uma, no tambor. Em seguida dei um pequeno impulso pra direita; o tambor aninhou-se de volta na arma. Respirei… Destravei o cão e, então, preparei-me para morrer.

Coloquei o cano do revólver sobre o peito. Preparei-me para puxar o gatilho. Um tiro à queima-roupa com uma Colt calibre 32 causa um impacto dos infernos. Você sente aquele murro lhe empurrado pra trás com violência. Então uma dor lancinante se espalha pelo corpo e você empacota. De repente o estampido. Um cheiro de pólvora tomou conta do quarto…

O camareiro foi o primeiro a vê-lo: uma perna sobre a cama, a outra fora e os braços abertos em cruz e um Colt 32, com cabo de madrepérola, na mão direita. Já estava morto!