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Analisando o radicalismo de Clarice Lispector, que explodiu os conceitos de conto e romance, José Castello lembra que escrever é mexer com algo que está além de nós. O exercício da semana demanda esse algo “além”.
Hoje vou tratar de uma escritora radical. Uma mulher que explodiu não só nossas idéias a respeito do conto, mas também do romance. Que expandiu até fronteiras impensáveis a imagem que, em geral, mesmo nos casos extremos de James Joyce, Marcel Proust e Franz Kafka, temos a respeito da literatura.
Sim, vou falar de Clarice Lispector que, para mim, é sempre uma referência inevitável. E, para falar de Clarice e de sua estratégia literária quase suicida, pois ao ampliar os limites da literatura é a própria literatura que ela coloca em risco, vou tratar de dois dos contos mais enigmáticos que escreveu: “O ovo e a galinha”, que está em Laços de família, livro de 1960, e “O relatório da coisa”, de Onde estiveste de noite, de 1974.
A primeira impressão que se tem é a de que ambos não são contos. Talvez não sejam nem mesmo literatura. Clarice leu “O ovo e a galinha” em um congresso de bruxaria, em Bogotá. “O relatório da coisa” já mereceu o interesse de filósofos e também de psicanalistas que pouco ou nada se interessam pela literatura. Será “O ovo e a galinha” um texto místico? Será mesmo “O relatório da coisa” uma peça de ficção?
Mas, se não são contos, o que eles são? Lá estamos nós, de novo, no impasse interminável: o que vem primeiro, o ovo, ou a galinha? O que vem primeiro? Os contos realmente existentes, ou nossa idéia do que um conto deva ser? Clarice nos deixa, sempre, diante de perguntas incômodas. Quando escrevia, a última coisa que a preocupava era preencher uma forma, corresponder a expectativas, cumprir com esmero preceitos técnicos, reforçar ou confirmar tradições. Pouco se interessava, também, em se opor às tradições, em contestá-las, em destruí-las. Não escreveu para chocar, ou para agredir, ou para desmentir.
A relação de Clarice com a literatura estava acima dessas circunstâncias e dessas estratégias que, por hábito, associamos ao literário. “Por que escrevo? E por que bebemos água?” – ela comparava. Os modelos, as tradições, os cânones não passam de “desculpas”, Clarice pensava, que usamos para ousar escrever. São, no máximo, pontos de partidas, que não podem se transformar nem em obsessões positivas (coisa do “bom aluno”), nem em exemplos negativos (coisa do “aluno rebelde”). Em literatura não existe a nota 10, ou a nota zero. Nem aprovação, nem reprovação. Existe coragem, ou não existe. Ou bem o escritor encontra e se aferra a sua própria voz, ou fracassa.
Se desistirmos das ilusões literárias, temos enfim a chance de ler os contos de Clarice, mesmo os mais difíceis e enigmáticos, com alguma liberdade. Sem esperar encontrar nada, sem desejar nada, sem exigir nada – simplesmente ler, e “sofrer” do que lemos. Quanto mais desarmado um leitor se aproxima de um livro, melhor poderá lê-lo. Não é só o escritor que deve ser livre, o leitor também. Eles são as duas pontas do que chamamos de literatura. Ela não existe sem nenhum dos dois.
Já disseram, algumas vezes, que minha visão da literatura é “idealista”, pois não me preocupo com os cânones, com as leis de mercado, com as modas literárias, com os princípios teóricos, com as tendências e as escolas. Mas penso o contrário: idealistas são os outros, não eu. Idealistas partem do antigo modelo platônico: há um ideal impecável que paira sobre nós, e nosso destino é cumpri-lo, ou reproduzi-lo, e nada mais. Muitos acreditam que, agindo assim, submetendo-se a cânones e às modas e às últimas leis da teoria, agem de forma sensata e realista. Pois acredito, ao contrário: que agem da forma idealista mais escandalosa. Que perdem o chão.
Quem não é idealista, nada idealiza, nada espera. E esse “nada esperar” é a melhor atitude para um leitor. Oferecer-se, livre, de peito aberto, para o “tiro” disparado pelo livro que abre. Entregar-se, sem desejos e sem ideais. Idealista é, ao contrário, quem pensa que a literatura deve ser isso ou aquilo, que deve provocar tal ou tal coisa, que deve lidar com tais princípios, ou tais estratégias. Estes, sim, vêem a literatura como a repetição monótona – e no máximo “brilhante”, no máximo “bem escrita” – de um modelo. Como “resultado” e não como aventura. E, para mim, literatura é antes de tudo aventura.
Os escritores também precisam esquecer dos modelos, ou não terão liberdade para escrever. Clarice Lispector não tinha modelos. Não os cultivava. Não se interessava por eles. Seus livros partem de anotações vagas, que ela tomava ao acaso, em tiras de papel, guardanapos, folhas de jornal, sempre na mais absoluta solidão. Escrevia por impulsos, por ondas, por jatos, sem uma direção pré-estabelecida, sem esboços, sem estratégias. Abdicava do controle sobre o que escrevia, entregava-se ao que viesse, fosse o que fosse. E sabia aceitar o que lhe vinha, por menos que compreendesse o que lhe vinha.
Está tudo em seus contos. Basta ler “O ovo e a galinha”, um dos mais radicais que escreveu. “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo”, ela começa. Frase terrível para começar um conto, frase que parece imprestável. Inútil e até perigosa. Como tirar uma história disso? Mas Clarice avança: “Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo”. E o conto começou. Dessa impossibilidade, e não de um ato, de uma ação, de um feito, ele começou. Surgiu de um nada. Surgiu da estupidez de um ovo.
Pronto: de um ovo, do simples ovo de uma galinha, Clarice parte para uma reflexão sobre a percepção. Um ovo: olhamos para um ovo, qualquer ovo, e ele “é” todos os ovos. Ovos não têm nome, não têm identidade, não se distinguem, a não ser por coisas muito insignificantes como a cor, ou o tamanho. “O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe”, Clarice diz. O ovo é a “Coisa”. Ou, como preferia dizer às vezes, é o “Isto”. É o “It”, dizia também. Maneiras que tinha para chamar o que lhe escapava.
“It” – pronome neutro que, no inglês, fala das coisas sem gênero. Fala das coisas. “Isto” nos faz lembrar o “Isso”, outro nome que os psicanalistas dão ao “Id”, a parte mais profunda do psiquismo, na qual se movimentam materiais sob os quais não temos controle algum. “Coisa”: “objeto inanimado, aquilo que existe”, diz o dicionário. Existe e só: isso lhe basta.
A visão do ovo – da “Coisa” – sobre a mesa leva a narradora a refletir sobre o perigo da repetição. O ovo tem uma casca, e essa casca se repete. Só tem exterior – e, no entanto, “o ovo é a alma da galinha”, ela diz. Mas também podemos pensar o contrário: a galinha pode ser o disfarce do ovo, sua fantasia, sua máscara. Aquilo que o protege e lhe permite atravessar o tempo sem se quebrar. Aquilo que, apesar de tudo, persiste – como uma pedra, como um planeta.
Estamos na terceira página e o que aconteceu até agora? Nada. Tudo o que aconteceu está na primeira linha: “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo”. Essa frase, a rigor, “é” o conto. O resto, todo o resto, o conto inteiro, é uma reflexão sobre o próprio conto. Quero dizer com isso: é uma reflexão sobre a literatura. Sim, “O ovo e a galinha” é um texto crítico. É, de certo modo, mais crítica literária que ficção. Nela, como faz tantas vezes, Clarice reflete sobre o papel das palavras. Para que servem? Para apontar, ou para encobrir? Para revelar, ou para esconder? Se é que servem para alguma coisa. Narrar é fazer essas perguntas, é nelas persistir. E, no entanto, Clarice não se arrisca no ensaio, Clarice persegue sua personagem e persiste em seu projeto de ficção. Não abre mão da literatura, mesmo se atirando fora dela.
Do ovo, a narradora de Clarice (Clarice?) parte para uma reflexão sobre a galinha, uma ave em geral desprezada, tratada como sonsa e insignificante, uma ave sem atributos. Seu único atributo é o ovo. A galinha, ela diz, vive em um grande sonho, vive em estado de devaneio – isto é, é uma ave incapaz de pensar, incapaz de se conectar com o real. “A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecida da galinha é o ovo”. Por sofrer (e apesar de todas as galinhas parecerem sempre a mesma galinha), a galinha tem uma alma, pois na verdade só tem vida interior. No exterior, ela é só uma galinha qualquer, isto é, ela é só a casca da galinha. “A nossa visão de sua vida interior é o que nós chamamos de galinha”, a narradora diz.
Mas, embora só tenha vida interior, a vida pessoal da galinha não tem interesse algum. A vida interior da galinha é o ovo. E mais nada. A galinha existe para servir o ovo, “por isso uma galinha não pode ser feliz”. Da meditação sobre a galinha, Clarice salta (que abismo!) para uma meditação sobre o amor. O amor é o reconhecimento. É aquilo que a galinha é incapaz de sentir – é o que uma galinha não é. Quanto ao mais, somos apenas veículos da própria vida, e nisso nos assemelhamos às galinhas. “O meu mistério é eu ser apenas um meio, e não um fim”, ela escreve. Somos tão transitórios e estúpidos quanto as galinhas. E é disso, enfim, que fazemos literatura, como tudo o mais.
Por isso, a galinha precisa esquecer do ovo: para que possa ser. Nós homens, do mesmo modo, temos que esquecer da obra e da mitologia que a cerca, a da Grande Obra, para que a obra possa existir. Clarice faz aqui não só uma defesa do esquecimento, mas da ignorância. “O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa”, diz. Destino, obra. Literatura. Escrever é mexer com algo que está além de nós. Não é engrandecer-se, é ao contrário diminuir-se. Se nos damos conta de que somos apenas poeira dentro de uma enorme galáxia, diminuímos. Somos massacrados. Mas isso nos fornece nosso lugar. O ponto de onde podemos partir, dele e de mais nenhum. A galáxia nos carrega, nos “é”. Somos, como a galinha, agentes de algo ou alguém que desconhecemos e que não dominamos. Falamos (escrevemos) para esquecer essa submissão de que não podemos escapar. Falamos muitas vezes no automático – cacarejamos.
O ovo – a obra – é, então, o impossível, Clarice nos leva a ver. A galinha só consegue botar ovos porque é indiferente a eles. Essa indiferença é também força da criação humana, e, portanto, da criação literária. Isso não significa não trabalhar, não lutar, não se empenhar. Significa que, antes disso, há um momento em que o esquecimento e a meditação se sobrepõem ao suor e ao trabalho. Tornam-se mais fortes que o próprio autor. Autor? Mas como garantir que somos donos do que escrevemos? Inspiração? Nada disso, a palavra é velha e inútil. Se for para tomar uma imagem física, podemos falar (bem melhor) em expiração, o ato de expulsar o ar dos pulmões, de expulsar aquilo que temos dentro de nós e que nem sabemos o que é.
A leitura do segundo conto, “O relatório da coisa”, provoca reflexões muito parecidas, e tão angustiantes. Conto (conto?) em que Clarice, exatamente como faz em romances geniais como A paixão segundo G.H. e Água viva, escreve não para fazer literatura, mas para arriscar-se além dela. “O meu jogo é aberto: digo logo o que tenho a dizer e sem literatura. Este relatório é a antiliteratura da coisa”, adverte logo no terceiro parágrafo. Desistência da literatura ou, ao contrário, expansão da noção restrita e medrosa que temos normalmente da literatura? Creio que Clarice poderia repetir, aqui, as palavras de Franz Kafka em uma das cartas a Felice: “Todo o meu modo de viver está orientado exclusivamente para a criação literária. O tempo é escasso; as forças são exíguas; o escritório é um pavor e o lar é ruidoso”. Escreve-se apesar do cotidiano. Apesar dos obstáculos. Apesar de nós mesmos.
Kafka, de alguma forma, compartilhava da idéia de literatura que, em “O relatório da coisa”, Clarice expressa. Anti-literatura, ou anti alguma coisa que, em geral, consideramos “literária”, mas que literatura, a rigor, não é? Clarice – como Kafka – via-se como um campo humano (um campo espiritual) em que se defrontavam forças antagônicas. De um lado, o social (o “G. H. até nas valises”), máscara da mulher, da escritora, da autora. De outro, esse sujeito pequeno que sofre a pressão da “Coisa”, que não passa de um joguete em suas mãos. Que se expõe ao risco e que faz dessa exposição uma maneira de existir. Uma maneira de escrever.
Neste segundo conto, em vez de um ovo, Clarice parte de um relógio, da marca “Sveglia” – “o que (em italiano) quer dizer acorda”, ela lembra. O relógio é uma coisa. Por ser uma coisa, ele leva a narradora a se perguntar se ela também é uma coisa. Ele a “acorda”. A coisa denuncia a inconstância do humano. Escreve: “Eu creio no Sveglia. Ele não crê em mim. Acho que minto muito. E minto mesmo. Na Terra se mente muito”. Existir é mentir – é portar máscaras, desempenhar papéis, adaptar-se a situações, defender-se do pior. Escrever é mentir também. Pessoa e seu verso fabuloso: é fingir que sente a dor que deveras sente.
Mas onde está a história? Onde está o conto? E onde Clarice pretende chegar? Ela deixa claro, desde as primeiras linhas: não sabe. Deixa-se arrastar pela objetividade de um relógio, da “Coisa” – e é a “Coisa” então que toma o lugar de personagem, que se expõe ao relatório e se torna objeto da escrita. “Sveglia não admite conto ou romance, o que quer que seja. Permite apenas transmissão. Mal admite que eu chame isto de relatório. Chamo de relatório do mistério”. Transmissão de quê? Da perplexidade que é escrever. “O relatório da coisa” é uma transmissão da experiência da impossibilidade da escrita. Mas só porque é impossível, só porque ninguém consegue (como se marca um gol, ou se ganha na loteria, ou resolve um problema matemático), só por isso continuamos a fazer.
Sveglia (a coisa) “apenas é”. E é esse “apenas é” que “O relatório da coisa”, e também toda a literatura magistral de Clarice, toma como objeto. Estranho projeto: o de tomar como destino um ponto em que jamais se chega. Então, com uma obscuridade que apenas finge clarear, a narradora de Clarice (Clarice?) passa a dizer o que é Sveglia, e o que não é. Passa a classificar o mundo – e a apontar a gratuidade, a inoperância, a futilidade das classificações.
Começa seu relatório. “O galo é Sveglia. O ovo é puro Sveglia. Mas só o ovo inteiro, completo, branco, de casca seca, todo oval”. O ovo novamente, imagem que retorna sempre, até nas narrativas infantis de Clarice (penso em “A vida íntima de Laura, a galinha”). “Não ter nenhum segredo – e no entanto manter o enigma – é Sveglia”, prossegue. Sveglia é o silêncio. E, diante da “Coisa”, tudo o que lhe resta como escritora é o relatório, e não a literatura. “Já te odeio. Já queria poder escrever uma história: um conto ou romance ou uma transmissão. Qual vai ser o meu futuro passo na literatura? Desconfio que não escreverei mais nada”. Clarice escreve sobre o impasse – não só “a cerca” dele, mas “em cima” dele. Posso dizer mais: dentro dele.
Contos? É difícil incluir “O relatório da coisa” e “O ovo e a galinha” nos modelos de conto de que dispomos. No entanto, os dois se incluem em livros de contos, importante e festejados livros de contos. São contos que explodem a literatura e explodem a própria idéia de conto. Mas cuidado: não são ensaios, não são divagações, não são confissões, não são “pensamentos”, ou “anotações”, ou “desabafos”. Fossem só isso e não nos interessariam, não nos iluminariam. Quando os lemos, mesmo diante de personagens que apenas falam e que se escondem nas palavras, estamos diante da “Coisa”. A vida pulsa na escrita de Clarice. Alguma coisa autônoma, e muito bem construída, e que é bem mais que um punhado de palavras soltas, nos seduz.
Clarice não tinha nenhuma dívida, nenhum “respeito” pela literatura, e por isso se deu tanta liberdade, se permitiu escrever como quis e, mais que isso, como era. É o exercício difícil que proponho a vocês nessa semana. Que partam de uma história simples, que lhes dou por itens, como num relatório, e a partir delas, numa explosão, cheguem a alguma coisa mais que não seja a história. Mas atenção: o que devem escrever é um conto. Por mais que avancem e se desviem das normas, devem se conservar (como faz Clarice sempre) no terreno da ficção.
EXERCÍCIO DE EXPLOSÃO
Escreva um relato de no máximo 3 mil caracteres a partir da seguinte seqüência de acontecimentos:
1- Um homem se levanta.
2- Vai ao banheiro e se observa no espelho.
3- Passa a espuma de barbear no rosto, pega sua navalha, mas não consegue se barbear.
4- A campainha toca, mas ele não se move. 5- A campainha insiste e tudo o que ele faz é fechar a porta do banheiro.
É claro, a idéia, como Clarice em suas “explosões”, é ir além dessa história. É usá-la para chegar a alguma coisa além dela.