Oficina de Contos – José Castello – Sexta Aula

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Analisando o radicalismo de Clarice Lispector, que explodiu os conceitos de conto e romance, José Castello lembra que escrever é mexer com algo que está além de nós. O exercício da semana demanda esse algo “além”.
Hoje vou tratar de uma escritora radical. Uma mulher que explodiu não só nossas idéias a respeito do conto, mas também do romance. Que expandiu até fronteiras impensáveis a imagem que, em geral, mesmo nos casos extremos de James Joyce, Marcel Proust e Franz Kafka, temos a respeito da literatura.

Sim, vou falar de Clarice Lispector que, para mim, é sempre uma referência inevitável. E, para falar de Clarice e de sua estratégia literária quase suicida, pois ao ampliar os limites da literatura é a própria literatura que ela coloca em risco, vou tratar de dois dos contos mais enigmáticos que escreveu: “O ovo e a galinha”, que está em Laços de família, livro de 1960, e “O relatório da coisa”, de Onde estiveste de noite, de 1974.

A primeira impressão que se tem é a de que ambos não são contos. Talvez não sejam nem mesmo literatura. Clarice leu “O ovo e a galinha” em um congresso de bruxaria, em Bogotá. “O relatório da coisa” já mereceu o interesse de filósofos e também de psicanalistas que pouco ou nada se interessam pela literatura. Será “O ovo e a galinha” um texto místico? Será mesmo “O relatório da coisa” uma peça de ficção?

Mas, se não são contos, o que eles são? Lá estamos nós, de novo, no impasse interminável: o que vem primeiro, o ovo, ou a galinha? O que vem primeiro? Os contos realmente existentes, ou nossa idéia do que um conto deva ser? Clarice nos deixa, sempre, diante de perguntas incômodas. Quando escrevia, a última coisa que a preocupava era preencher uma forma, corresponder a expectativas, cumprir com esmero preceitos técnicos, reforçar ou confirmar tradições. Pouco se interessava, também, em se opor às tradições, em contestá-las, em destruí-las. Não escreveu para chocar, ou para agredir, ou para desmentir.

A relação de Clarice com a literatura estava acima dessas circunstâncias e dessas estratégias que, por hábito, associamos ao literário. “Por que escrevo? E por que bebemos água?” – ela comparava. Os modelos, as tradições, os cânones não passam de “desculpas”, Clarice pensava, que usamos para ousar escrever. São, no máximo, pontos de partidas, que não podem se transformar nem em obsessões positivas (coisa do “bom aluno”), nem em exemplos negativos (coisa do “aluno rebelde”). Em literatura não existe a nota 10, ou a nota zero. Nem aprovação, nem reprovação. Existe coragem, ou não existe. Ou bem o escritor encontra e se aferra a sua própria voz, ou fracassa.

Se desistirmos das ilusões literárias, temos enfim a chance de ler os contos de Clarice, mesmo os mais difíceis e enigmáticos, com alguma liberdade. Sem esperar encontrar nada, sem desejar nada, sem exigir nada – simplesmente ler, e “sofrer” do que lemos. Quanto mais desarmado um leitor se aproxima de um livro, melhor poderá lê-lo. Não é só o escritor que deve ser livre, o leitor também. Eles são as duas pontas do que chamamos de literatura. Ela não existe sem nenhum dos dois.

Já disseram, algumas vezes, que minha visão da literatura é “idealista”, pois não me preocupo com os cânones, com as leis de mercado, com as modas literárias, com os princípios teóricos, com as tendências e as escolas. Mas penso o contrário: idealistas são os outros, não eu. Idealistas partem do antigo modelo platônico: há um ideal impecável que paira sobre nós, e nosso destino é cumpri-lo, ou reproduzi-lo, e nada mais. Muitos acreditam que, agindo assim, submetendo-se a cânones e às modas e às últimas leis da teoria, agem de forma sensata e realista. Pois acredito, ao contrário: que agem da forma idealista mais escandalosa. Que perdem o chão.

Quem não é idealista, nada idealiza, nada espera. E esse “nada esperar” é a melhor atitude para um leitor. Oferecer-se, livre, de peito aberto, para o “tiro” disparado pelo livro que abre. Entregar-se, sem desejos e sem ideais. Idealista é, ao contrário, quem pensa que a literatura deve ser isso ou aquilo, que deve provocar tal ou tal coisa, que deve lidar com tais princípios, ou tais estratégias. Estes, sim, vêem a literatura como a repetição monótona – e no máximo “brilhante”, no máximo “bem escrita” – de um modelo. Como “resultado” e não como aventura. E, para mim, literatura é antes de tudo aventura.

Os escritores também precisam esquecer dos modelos, ou não terão liberdade para escrever. Clarice Lispector não tinha modelos. Não os cultivava. Não se interessava por eles. Seus livros partem de anotações vagas, que ela tomava ao acaso, em tiras de papel, guardanapos, folhas de jornal, sempre na mais absoluta solidão. Escrevia por impulsos, por ondas, por jatos, sem uma direção pré-estabelecida, sem esboços, sem estratégias. Abdicava do controle sobre o que escrevia, entregava-se ao que viesse, fosse o que fosse. E sabia aceitar o que lhe vinha, por menos que compreendesse o que lhe vinha.

Está tudo em seus contos. Basta ler “O ovo e a galinha”, um dos mais radicais que escreveu. “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo”, ela começa. Frase terrível para começar um conto, frase que parece imprestável. Inútil e até perigosa. Como tirar uma história disso? Mas Clarice avança: “Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo”. E o conto começou. Dessa impossibilidade, e não de um ato, de uma ação, de um feito, ele começou. Surgiu de um nada. Surgiu da estupidez de um ovo.

Pronto: de um ovo, do simples ovo de uma galinha, Clarice parte para uma reflexão sobre a percepção. Um ovo: olhamos para um ovo, qualquer ovo, e ele “é” todos os ovos. Ovos não têm nome, não têm identidade, não se distinguem, a não ser por coisas muito insignificantes como a cor, ou o tamanho. “O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe”, Clarice diz. O ovo é a “Coisa”. Ou, como preferia dizer às vezes, é o “Isto”. É o “It”, dizia também. Maneiras que tinha para chamar o que lhe escapava.

“It” – pronome neutro que, no inglês, fala das coisas sem gênero. Fala das coisas. “Isto” nos faz lembrar o “Isso”, outro nome que os psicanalistas dão ao “Id”, a parte mais profunda do psiquismo, na qual se movimentam materiais sob os quais não temos controle algum. “Coisa”: “objeto inanimado, aquilo que existe”, diz o dicionário. Existe e só: isso lhe basta.

A visão do ovo – da “Coisa” – sobre a mesa leva a narradora a refletir sobre o perigo da repetição. O ovo tem uma casca, e essa casca se repete. Só tem exterior – e, no entanto, “o ovo é a alma da galinha”, ela diz. Mas também podemos pensar o contrário: a galinha pode ser o disfarce do ovo, sua fantasia, sua máscara. Aquilo que o protege e lhe permite atravessar o tempo sem se quebrar. Aquilo que, apesar de tudo, persiste – como uma pedra, como um planeta.

Estamos na terceira página e o que aconteceu até agora? Nada. Tudo o que aconteceu está na primeira linha: “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo”. Essa frase, a rigor, “é” o conto. O resto, todo o resto, o conto inteiro, é uma reflexão sobre o próprio conto. Quero dizer com isso: é uma reflexão sobre a literatura. Sim, “O ovo e a galinha” é um texto crítico. É, de certo modo, mais crítica literária que ficção. Nela, como faz tantas vezes, Clarice reflete sobre o papel das palavras. Para que servem? Para apontar, ou para encobrir? Para revelar, ou para esconder? Se é que servem para alguma coisa. Narrar é fazer essas perguntas, é nelas persistir. E, no entanto, Clarice não se arrisca no ensaio, Clarice persegue sua personagem e persiste em seu projeto de ficção. Não abre mão da literatura, mesmo se atirando fora dela.

Do ovo, a narradora de Clarice (Clarice?) parte para uma reflexão sobre a galinha, uma ave em geral desprezada, tratada como sonsa e insignificante, uma ave sem atributos. Seu único atributo é o ovo. A galinha, ela diz, vive em um grande sonho, vive em estado de devaneio – isto é, é uma ave incapaz de pensar, incapaz de se conectar com o real. “A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecida da galinha é o ovo”. Por sofrer (e apesar de todas as galinhas parecerem sempre a mesma galinha), a galinha tem uma alma, pois na verdade só tem vida interior. No exterior, ela é só uma galinha qualquer, isto é, ela é só a casca da galinha. “A nossa visão de sua vida interior é o que nós chamamos de galinha”, a narradora diz.

Mas, embora só tenha vida interior, a vida pessoal da galinha não tem interesse algum. A vida interior da galinha é o ovo. E mais nada. A galinha existe para servir o ovo, “por isso uma galinha não pode ser feliz”. Da meditação sobre a galinha, Clarice salta (que abismo!) para uma meditação sobre o amor. O amor é o reconhecimento. É aquilo que a galinha é incapaz de sentir – é o que uma galinha não é. Quanto ao mais, somos apenas veículos da própria vida, e nisso nos assemelhamos às galinhas. “O meu mistério é eu ser apenas um meio, e não um fim”, ela escreve. Somos tão transitórios e estúpidos quanto as galinhas. E é disso, enfim, que fazemos literatura, como tudo o mais.

Por isso, a galinha precisa esquecer do ovo: para que possa ser. Nós homens, do mesmo modo, temos que esquecer da obra e da mitologia que a cerca, a da Grande Obra, para que a obra possa existir. Clarice faz aqui não só uma defesa do esquecimento, mas da ignorância. “O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa”, diz. Destino, obra. Literatura. Escrever é mexer com algo que está além de nós. Não é engrandecer-se, é ao contrário diminuir-se. Se nos damos conta de que somos apenas poeira dentro de uma enorme galáxia, diminuímos. Somos massacrados. Mas isso nos fornece nosso lugar. O ponto de onde podemos partir, dele e de mais nenhum. A galáxia nos carrega, nos “é”. Somos, como a galinha, agentes de algo ou alguém que desconhecemos e que não dominamos. Falamos (escrevemos) para esquecer essa submissão de que não podemos escapar. Falamos muitas vezes no automático – cacarejamos.

O ovo – a obra – é, então, o impossível, Clarice nos leva a ver. A galinha só consegue botar ovos porque é indiferente a eles. Essa indiferença é também força da criação humana, e, portanto, da criação literária. Isso não significa não trabalhar, não lutar, não se empenhar. Significa que, antes disso, há um momento em que o esquecimento e a meditação se sobrepõem ao suor e ao trabalho. Tornam-se mais fortes que o próprio autor. Autor? Mas como garantir que somos donos do que escrevemos? Inspiração? Nada disso, a palavra é velha e inútil. Se for para tomar uma imagem física, podemos falar (bem melhor) em expiração, o ato de expulsar o ar dos pulmões, de expulsar aquilo que temos dentro de nós e que nem sabemos o que é.

A leitura do segundo conto, “O relatório da coisa”, provoca reflexões muito parecidas, e tão angustiantes. Conto (conto?) em que Clarice, exatamente como faz em romances geniais como A paixão segundo G.H. e Água viva, escreve não para fazer literatura, mas para arriscar-se além dela. “O meu jogo é aberto: digo logo o que tenho a dizer e sem literatura. Este relatório é a antiliteratura da coisa”, adverte logo no terceiro parágrafo. Desistência da literatura ou, ao contrário, expansão da noção restrita e medrosa que temos normalmente da literatura? Creio que Clarice poderia repetir, aqui, as palavras de Franz Kafka em uma das cartas a Felice: “Todo o meu modo de viver está orientado exclusivamente para a criação literária. O tempo é escasso; as forças são exíguas; o escritório é um pavor e o lar é ruidoso”. Escreve-se apesar do cotidiano. Apesar dos obstáculos. Apesar de nós mesmos.

Kafka, de alguma forma, compartilhava da idéia de literatura que, em “O relatório da coisa”, Clarice expressa. Anti-literatura, ou anti alguma coisa que, em geral, consideramos “literária”, mas que literatura, a rigor, não é? Clarice – como Kafka – via-se como um campo humano (um campo espiritual) em que se defrontavam forças antagônicas. De um lado, o social (o “G. H. até nas valises”), máscara da mulher, da escritora, da autora. De outro, esse sujeito pequeno que sofre a pressão da “Coisa”, que não passa de um joguete em suas mãos. Que se expõe ao risco e que faz dessa exposição uma maneira de existir. Uma maneira de escrever.

Neste segundo conto, em vez de um ovo, Clarice parte de um relógio, da marca “Sveglia” – “o que (em italiano) quer dizer acorda”, ela lembra. O relógio é uma coisa. Por ser uma coisa, ele leva a narradora a se perguntar se ela também é uma coisa. Ele a “acorda”. A coisa denuncia a inconstância do humano. Escreve: “Eu creio no Sveglia. Ele não crê em mim. Acho que minto muito. E minto mesmo. Na Terra se mente muito”. Existir é mentir – é portar máscaras, desempenhar papéis, adaptar-se a situações, defender-se do pior. Escrever é mentir também. Pessoa e seu verso fabuloso: é fingir que sente a dor que deveras sente.

Mas onde está a história? Onde está o conto? E onde Clarice pretende chegar? Ela deixa claro, desde as primeiras linhas: não sabe. Deixa-se arrastar pela objetividade de um relógio, da “Coisa” – e é a “Coisa” então que toma o lugar de personagem, que se expõe ao relatório e se torna objeto da escrita. “Sveglia não admite conto ou romance, o que quer que seja. Permite apenas transmissão. Mal admite que eu chame isto de relatório. Chamo de relatório do mistério”. Transmissão de quê? Da perplexidade que é escrever. “O relatório da coisa” é uma transmissão da experiência da impossibilidade da escrita. Mas só porque é impossível, só porque ninguém consegue (como se marca um gol, ou se ganha na loteria, ou resolve um problema matemático), só por isso continuamos a fazer.

Sveglia (a coisa) “apenas é”. E é esse “apenas é” que “O relatório da coisa”, e também toda a literatura magistral de Clarice, toma como objeto. Estranho projeto: o de tomar como destino um ponto em que jamais se chega. Então, com uma obscuridade que apenas finge clarear, a narradora de Clarice (Clarice?) passa a dizer o que é Sveglia, e o que não é. Passa a classificar o mundo – e a apontar a gratuidade, a inoperância, a futilidade das classificações.

Começa seu relatório. “O galo é Sveglia. O ovo é puro Sveglia. Mas só o ovo inteiro, completo, branco, de casca seca, todo oval”. O ovo novamente, imagem que retorna sempre, até nas narrativas infantis de Clarice (penso em “A vida íntima de Laura, a galinha”). “Não ter nenhum segredo – e no entanto manter o enigma – é Sveglia”, prossegue. Sveglia é o silêncio. E, diante da “Coisa”, tudo o que lhe resta como escritora é o relatório, e não a literatura. “Já te odeio. Já queria poder escrever uma história: um conto ou romance ou uma transmissão. Qual vai ser o meu futuro passo na literatura? Desconfio que não escreverei mais nada”. Clarice escreve sobre o impasse – não só “a cerca” dele, mas “em cima” dele. Posso dizer mais: dentro dele.

Contos? É difícil incluir “O relatório da coisa” e “O ovo e a galinha” nos modelos de conto de que dispomos. No entanto, os dois se incluem em livros de contos, importante e festejados livros de contos. São contos que explodem a literatura e explodem a própria idéia de conto. Mas cuidado: não são ensaios, não são divagações, não são confissões, não são “pensamentos”, ou “anotações”, ou “desabafos”. Fossem só isso e não nos interessariam, não nos iluminariam. Quando os lemos, mesmo diante de personagens que apenas falam e que se escondem nas palavras, estamos diante da “Coisa”. A vida pulsa na escrita de Clarice. Alguma coisa autônoma, e muito bem construída, e que é bem mais que um punhado de palavras soltas, nos seduz.

Clarice não tinha nenhuma dívida, nenhum “respeito” pela literatura, e por isso se deu tanta liberdade, se permitiu escrever como quis e, mais que isso, como era. É o exercício difícil que proponho a vocês nessa semana. Que partam de uma história simples, que lhes dou por itens, como num relatório, e a partir delas, numa explosão, cheguem a alguma coisa mais que não seja a história. Mas atenção: o que devem escrever é um conto. Por mais que avancem e se desviem das normas, devem se conservar (como faz Clarice sempre) no terreno da ficção.

 

EXERCÍCIO DE EXPLOSÃO

Escreva um relato de no máximo 3 mil caracteres a partir da seguinte seqüência de acontecimentos:

1- Um homem se levanta.

2- Vai ao banheiro e se observa no espelho.

3- Passa a espuma de barbear no rosto, pega sua navalha, mas não consegue se barbear.

4- A campainha toca, mas ele não se move. 5- A campainha insiste e tudo o que ele faz é fechar a porta do banheiro.

É claro, a idéia, como Clarice em suas “explosões”, é ir além dessa história. É usá-la para chegar a alguma coisa além dela.

Oficina de Contos – José Castello – Quinta Aula

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Luigi Pirandello, E.M. Cioran e Franz Kafka são trazidos por José Castello à quinta aula para ensinar sobre a dança de máscaras da literatura. O desafio proposto pelo mestre nesta semana trabalha paradoxos, mais uma vez, para fugir dos clichês.
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Ainda a pista preciosa que nos foi dada não por um contista, mas por um grande poeta, João Cabral de Melo Neto: escrever (poemas, contos, romances) é “dar a ver”. É aprender a ver, podemos modificar um pouco a idéia. É apurar o olhar, refiná-lo, de modo que se acostume a ver o que em geral não vê. A ver a instabilidade (a vida) e não a estabilidade (a morte). E não se limitar a ver “como todos vêem”. Não ver o que já esperamos encontrar, ver para confirmar, mas ver de novas maneiras, de novos ângulos, novas perspectivas, ver para levar um susto. Procura-se uma coisa, e encontra-se outra – e se suporte isso, e se faça algo não a partir do Mesmo perdido, mas a partir do Outro que se encontrou.

Palavra da moda, Outro, que está no jargão de psicanalistas, de antropólogos, de sociólogos. Palavra – conceito – que existe para abrir portas, mas que, às vezes, as fecha. O perigo das palavras! Uma afilhada querida, Rita Lemgruber, sempre me diz que, incomodada com a camisa de força (e não com a força!) dos jargões, prefere chamar o Outro de Fulaninho. Sua “tradução” não podia ser mais certeira! O dicionário define Fulano como a “designação vaga de pessoa incerta, ou de alguém que não se quer nomear”. Fulaninho, o diminutivo, carrega, ainda, uma dose de mau-humor, de desdém, de ironia. O Outro é isso: uma maneira insuficiente de nomear alguém, ou uma maneira de chamar algo a que, enfim, não conseguimos dar nome algum.

Escrever, em conseqüência, é livrar-se das máscaras – sociais, culturais, protocolares, de etiqueta, de boas maneiras – que vestimos para existir. Para enfrentar a vida. Dos óculos habituais que usamos para ver e que nos levam aos mesmos enquadramentos e aos mesmos pontos de vista. Arrancar as máscaras, para encontrar não o que já conhecemos, mas o que desconhecemos. Encontrar o Outro – ou o Fulaninho, como Rita me sugere. Aquele que mal suporta o peso de um nome! E o que acontece quando despimos essas máscaras? A ilusão realista leva a crer que, sob a máscara nefasta, encontraremos – desenterraremos! – homens de carne e osso. Homens “verdadeiros”, a verdade nua e crua. E a máscara ficaria, então, do lado da mentira, da falsificação, do medo, da fuga, da chantagem.

Um escritor genial – dramaturgo, mas também contista e ainda romancista – como o italiano Luigi Pirandello (1867-1936) já nos mostrou, contudo, que tal verdade secreta e perfeita, que se guardaria sob as máscaras, simplesmente não existe. A vida, ele pensava, é um desfile de máscaras e a questão não é se livrar delas, já que são as máscaras que nos elevam ao nível da linguagem e que, portanto, nos tornam humanos. A questão, bem diferente, e bem mais complexa, é saber lidar com elas. E não vacilar à espera do rosto “verdadeiro”, que não conseguiremos ver. Esse é o grande engano dos escritores realistas – erro brutal daqueles que pretendem fazer da literatura um veículo de acesso à verdade ou, pelo menos, de desmascaramento da verdade. Tiramos uma máscara, e outra, e mais outra – e nesse arrancar sem fim, o que nos surge não se parece nem um pouco com a verdade. Se a verdade é alguma coisa, ela é apenas esse arrancar interminável de máscaras.

Entre os aforismos de Luigi Pirandello, reunidos por Gino Ruozzi a partir da leitura de suas peças e narrativas, existe um que me interessa em particular. Aqui o traduzo precariamente, com meu italiano vacilante (apenas máscara do italiano!). Diz Pirandello: “O absurdo da vida não tem necessidade de parecer verossímil, porque é verdadeiro”. Oh frase! Volto ao dicionário: verossímil é aquilo que é “semelhante à verdade”, “que parece verdadeiro”. É a verdade provável, mas sob a qual resta sempre uma larga margem de dúvida, de inconsistência, de suspeita. O que nos diz Pirandello? Que a verdade não precisa “parecer verdadeira”, porque verdade já é. Em outras palavras: que a verdade, em geral, não se parece com a verdade!! Ela não tem as características – estabilidade, certeza, clareza – que em geral atribuímos à verdade. Ela é estranha, e provoca suspeita.

Logo: a verdade não se deixa pegar, não se deixa fotografar, não se deixa definir. Cada vez que arrancamos uma máscara, nós apenas nos aproximamos um pouco mais dela, o que é bem diferente de chegar até ela. Isso, é claro, é coisa que nem sempre suportamos. Queremos sempre, desde meninos, uma verdade serena, previsível, que combine com nossas expectativas e que nos deixe à vontade e seguros. Aquela verdade que, na primeira infância, numa falsificação indispensável, nos é dada pela figura poderosa da mãe. Pirandello trata disso em um belo conto, “Retorno”, que está em O marido de minha mulher, coletânea de doze narrativas breves que estão chegando ao mercado brasileiro em tradução de Jacob Penteado, pela Odisséia Editorial. Há outra bela reunião de contos do escritor italiano, Kaos e outros contos sicilianos, em tradução de Fulvia Moretto, publicada pela Nova Alexandria em 2001. Os dois livros oferecem exemplos notáveis da arte do conto. E da dança louca de máscaras que sustenta toda literatura.

Mas vamos ficar em “Retorno”. A leitura do conto me faz lembrar o comentário de Maurice Blanchot a respeito de Franz Kafka: “Kafka queria destruir sua obra porque acreditava que ela estava destinada a reafirmar e engrandecer o mal-entendido universal”. Foi o sonho de escapar da perfeição – de escapar da verdade irretocável – que o levou a pedir ao amigo Max Brod, pouco antes de morrer, que queimasse tudo o que escreveu. Kafka temia ser santificado. Temia que seus escritos viessem a ser lidos como lições luminosas e verdadeiras. Felizmente, Brod não o atendeu.

“Retorno”, o conto de Pirandello, se dá em torno de um mal-entendido. Eles ameaçam os escritores, como Kafka – mas, ao mesmo tempo, são a matéria prima de seus escritos. Vamos ao conto. Depois de muitos anos, Paulo Marra volta ao “triste povoado ao alto da montanha” em que nasceu. Vai direto até sua casa de infância, que encontra em ruínas. Ao reencontrar seu passado, em vez de sentir felicidade, Marra sente “mágoa e náusea”. Mágoa, desgosto, porque tem a sensação de que seu passado lhe foi roubado. Náusea, repugnância, porque não pode aceitar a casa desolada e semi-destruída que vê.

Algumas mulheres conversam sentadas em pedras que rodeiam a casa. Sua vontade é expulsá-las (mas a casa não lhe pertence mais!) e precisa controlar esse sentimento. Marra sente que a presença daqueles estranhos lhe rouba o direito de experimentar o desencanto e a mágoa que dominam suas recordações. Mágoa de quê? De não ver o que esperava ver. Não só de que não corresponda ao que esperava, mas até mesmo desminta o que acreditava que ia ver – motivo, afinal, de seu retorno à aldeia. Passado carregado de duras recordações, como as violências que o pai praticava contra a mãe que, frágil, morreu depois de um espancamento.

“Agora, voltando, depois de tantos anos, à terra natal, não tinha sido reconhecido por ninguém”, Marra constata. É todo um passado, cheio de feridas, que lhe é roubado. E por quê? Por causa da aparência – da máscara – que o tempo colocou sobre seu rosto. “Somente um tal se aproximara, um que ele nem podia imaginar quem pudesse ser”. O que significa dizer: também ele, Marra, roubava, daqueles moradores que persistiram na aldeia, não só seu passado, mas sua identidade. Fazia com eles o mesmo que faziam consigo. Só um homenzinho estranho o reconhece. Marra pensa que o sujeito se parece com o diabo. Isto é, com a pior ameaça. Logo percebe, no entanto, que se deixa vencer pela imaginação. Pergunta-se o que o leva a fraquejar, a ceder a impressões, a deixar que a imaginação se apodere de sua mente. Percebe, então, que é a culpa que o assola, porque deixou o pai – sim, o pai assassino – morrer na miséria, sem nada fazer por ele. A máscara do pai violento, nesse momento, cai. Algo também abala a memória pura que tinha da mãe. Máscaras por todos os lados, eis o que lhe resta. Eis tudo o que temos para amar, ou odiar.

O belo conto de Pirandello põe em cena os aspectos vacilantes e ambíguos daquilo que chamamos de admiração. Também o que chamamos, ao contrário, de repúdio. Não se trata de escolher entre os dois, mas de livrá-los da ilusão de certeza. Nada é bom, ou mau. O bem e o mal se misturam, se confundem, se alternam, e nunca podemos nos decidir, com segurança, onde cada um deles está. Essa é a potência da literatura: lidar com esses paradoxos, sem precisar solucioná-los, sem precisar tomar partido. É o que os contos de Pirandello nos mostram.

O Exercício de Admiração que se segue inspira-se no livro homônimo do filósofo romeno E. M. Cioran (1911-1995). Os Exercícios de admiração de Cioran, traduzidos no Brasil por José Thomaz Brum, reúnem ensaios e prefácios do escritor, e tratam de admirações fortes por Samuel Beckett, por Scott Fitzgerald, por Mircea Eliade. Cioran, o amargo, trabalha suas admirações, porém, com distância e prudência. Primeiro porque admirar não significa idealizar, não significa exagerar. A admiração pode ser, como em Cioran, dura e até cruel. Depois porque, quando admiramos um escritor, nem sempre sabemos por que o fazemos; nem sempre conseguimos dar um nome ao que nos mantém “presos” a ele. Qual é o segredo, qual é o “impasse” (já que escritores não fornecem respostas) que nos puxa? Então, como faz Cioran, transformar escritores em personagens pode nos ajudar a levar, e a eles também, para o terreno pantanoso e fértil da literatura. Incluí-los, em vez de excluí-los, no campo das palavras e das máscaras. Escritores são também, enfim, personagens. São máscaras, que circulam no meio literário, na imprensa literária, na literatura, nas capas (máscaras!) dos livros.

A descoberta, de aparência atordoante, é benéfica. Ela nos dá mais liberdade para escrever. Para, enfim, experimentar a máscara de escritor – sabendo que outras máscaras continuam, ainda, à nossa disposição. Para ser Outro – ou, como me sugere a inspirada Rita, para vestir a máscara de Fulaninho. Para aceitar, enfim, que não existem rostos limpos, corretos e definitivos, só o dos mortos, e mesmo assim a terra os come. Nesse caso, a crítica literária fica por conta dos vermes e dos insetos.

 

EXERCÍCIO DE ADMIRAÇÃO

Crie um personagem digno de admiração e escreva um conto (de, no máximo, 3 mil caracteres com espaços) que seja, de alguma forma, seu retrato. Há, porém, uma exigência: o conto deve revelar não só os aspectos positivos e dignos de admiração do personagem, mas deve obrigatoriamente revelar também aspectos nocivos e repulsivos, que tornem relativa, e até perturbadora, essa admiração. Admiração e repúdio devem andar juntos em seu relato, sem que o paradoxo de sua coexistência num mesmo personagem seja resolvido. Mais ainda: sem que os aspectos negativos ou repulsivos destruam os aspectos positivos, que sustentam essa mesma admiração.

Oficina de Contos – José Castello – Quarta Aula

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A quarta aula de José Castello traz o rigor e a secura da “poesia de pedra” de João Cabral de Melo Neto para ajudar o contista a livrar-se dos clichês. Marianne Moore e Milan Kundera também vêm ao auxílio dos alunos.
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Venho tratar hoje não de um contista, mas de um poeta. Eu sei: parece estranho falar de um poeta em uma oficina de contos. Mas, tenho certeza, isso nos será muito útil. Ocorre-me aqui uma sentença célebre de Gustave Flaubert, o autor de Madame Bovary, um romance-chave na literatura no século 19. Frase que, no meu entender, serve não só ao romancista, mas também ao contista e ao poeta: “Sempre me esforcei para adentrar a alma das coisas”. É claro: romances, contos, poemas, cada gênero tem sua história. Histórias que fundam tradições, hábitos, certezas – ainda que precárias certezas. Mas existe alguma coisa que, para além dos gêneros e da história, funda aquilo que chamamos de literatura. Talvez se possa pensar nesse “adentrar a alma” de que Flaubert nos fala.

Lembro de outro grande romancista, o checo Milan Kundera, para quem o romance não é “só mais um gênero literário, um galho entre os galhos de uma só árvore”. Com essa afirmação, Kundera luta para afirmar a particularidade do romance – gênero que, a seu ver, não se confunde com qualquer outro. As particularidades do conto e da poesia também podem (e devem) ser afirmadas por contistas e poetas. Nada disso, porém, apaga o lastro comum em que os escritores, de qualquer gênero, trafegam. Escrever, dizia Flaubert, é lutar para penetrar na alma (nos segredos) do mundo. E, para se arriscar a isso, cada escritor deve traçar seu próprio método, escavar seu próprio caminho.

Feitas essas ressalvas, volto a João Cabral de Melo Neto, um poeta numa oficina de contistas. Embora nunca tenha escrito contos, o poeta João Cabral de Melo Neto, com sua estética da secura, do corte e do rigor, pode nos ajudar muito a pensá-los. Poetas, como contistas, são artesãos da palavra, o que já os deixa muito próximos. Além disso, Cabral não foi um poeta qualquer. Foi, antes de tudo, um poeta que lutava para não “fazer poesia”, como se diz dos românticos e dos líricos. Queria, em vez disso, e em suas próprias palavras, “despoetizar a poesia”. Fazer uma poesia sem poesia – projeto que até hoje, em alguns poetas, provoca grande mal-estar.

Uma “poesia sem poesia”: isto é, uma poesia livre de todos os clichês que, por hábito e preguiça, atribuímos à poesia e ao poético. Uma poesia sem adornos, sem exageros, livre dos enfeites e de metáforas, distante o mais possível da retórica. Poesia de pedra, poesia de osso – “poesia de cabra”, dela dizia o lírico Vinicius de Moraes –, poesia concreta. Uma poesia dos substantivos e não dos adjetivos. Um duro projeto, que torna a arte do poeta ainda mais difícil mas, também, ainda mais potente. Por que não pensar, roubando a idéia de Cabral, de um “conto sem conto”? Isto é: um conto liberto de todos os clichês, todos os hábitos, todos os vícios normalmente a eles atribuídos.

João Cabral reclamou, muitas vezes, da preguiça e do convencionalismo que a seu ver, em seu tempo (e não hoje?), vigoravam entre os poetas. Todo mundo, de fato, acha que pode escrever poesia, nem que seja um “poema de amor”, ou um “poema de homenagem”, ou “de despedida”. Até nos cartões postais, nos telegramas de aniversário, nas lápides de cemitério, nos apelos da publicidade, nos bolos de casamento identificamos muitas vezes algo que, apressadamente, chamamos de “poesia”. Pensa-se, em geral, que basta uma lágrima, ou uma dor de cotovelo, ou a expressão mais forte de um sentimento, para que a poesia, como num passe de mágica, apareça. “O brasileiro em geral não é muito de trabalho”, Cabral se lamentava.

O que o poeta desejava afirmar? Que a poesia, ao contrário dos que crêem em Musas, em anjos, ou no poder da inspiração, ou ainda em manifestos estéticos e palavras de ordem que devem ser cumpridos ao pé da letra, é, sempre, o resultado de um imenso esforço e de muita disciplina intelectual. E, sobretudo, de uma arriscada e solitária viagem pessoal. O poeta não “incorpora” a poesia, como um médium. Ela, ao contrário, se faz passo a passo, peça a peça, como um edifício (Cabral sempre se interessou pela arquitetura e pelos arquitetos), ou como uma cadeira. Muito mais que ao médium, ou ao mágico, pensava Cabral, a poesia é obra do artesão.

Mas disciplinar-se não significa, ele dizia, submeter-se a regras alheias. Ao contrário: “Cada pessoa deve encontrar a sua forma rígida para a sua maneira de ser e depois segui-la”, disse numa longa conversa com André Pestana. Cada poeta (cada contista, podemos experimentar a troca) deve criar seus próprios limites, sua própria armadura, sua própria estrada, e a eles se aferrar com toda a força. A partir daí, não deve mais abrir mão do caminho que escolheu, por mais difícil que ele venha a ser. Criar suas próprias proibições, seus próprios tabus, seus próprios riscos e depois a eles se submeter com o máximo de rigidez e sem recuar: eis a estratégia do poeta. Mas não basta ser radical, não basta “desejar romper”. Cabral – que sempre foi considerado um grande inovador, e a quem as vanguardas literárias, até hoje, estão sempre a citar como um grande mestre – deixou claro, numa entrevista a O Globo, a distância que o separava dos vanguardistas. Resumiu assim: “Aceito a inovação caso ela venha a ser funcional e não como um meio de ser diferente”.

Inovar, para Cabral, não era “fazer o novo”, mas encontrar um caminho próprio, o mais adequado e mais eficaz, para chegar a um objetivo pessoal. O caráter funcional da inovação – que precisa “funcionar” para de fato ser nova – lhe tira, assim, o verniz glamouroso e escandaloso que tantos atribuem. E lhe confere um caráter mais problemático, que inclui a idéia de eficiência e que tem em vista, sempre, um destino. Claro, a poesia (e a literatura) não serve para nada, então não estamos falando aqui de um caráter utilitário, ou de uma função social. O funcional se refere mais às idéias, aos projetos, e, sobretudo, aos objetivos que cada artista fixa para si. Chegar a si: eis o objetivo, no fim, de todo escritor, poeta, contista, ou romancista.

Lições sábias, penso, também para um contista: decidir aonde quer chegar e depois seguir, com firmeza, por esse caminho, sem arredar o pé, sem ceder ao cansaço ou desânimo, por mais difíceis que sejam os desafios que escolheu para si. Volto aqui à definição de Mario de Andrade que citei em outra aula: “Conto é tudo o que chamamos de conto”. O importante não é saber o que é um conto, mas se, uma vez resolvido o que ele é, e cada contista resolve isso a seu modo, cumprir o que se prometeu. Numa antiga entrevista que deu ainda nos anos 60 em Lisboa, Cabral falava de seu descontentamento com o Pégaso, o cavalo que voa, que é considerado o símbolo da poesia. Ao crítico José Carlos de Vasconcelos, do Diário de Lisboa, ele sugeriu: “Nós deveríamos ter como símbolo da poesia não o Pégaso, mas a galinha, ou peru, que são aves que não voam. Para o poeta, o difícil é não voar e o esforço que ele deve fazer é esse”.

A galinha: uma ave que cisca e que, em vez de cobiçar grandes vôos, trabalha com a atenção voltada para o chão, para o imediato, para as miudezas, em busca de seu alimento. Contem-se e contenta-se com o menor. Ela é uma boa imagem também para o contista. Vôos exagerados podem levá-lo a perder o rumo e a se dispersar. Mais seguro é se deter no caminho que traçou para si e ali, como uma galinha concentrada na busca de seus farelos, permanecer firme. Mais uma vez Cabral repete: conter-se, conservar-se firmemente agarrado ao chão, endurecer, restringir-se. Nada de vôos inúteis, de divagações tortuosas, de experiências “sublimes”, de exageros, de excessos. Nada de grandes elevações, nenhuma nobreza, nenhuma grandiosidade. A poesia (o conto) é um trabalho duro, em que o escritor precisa sujar as mãos.

Cabral propunha uma poesia terra a terra, apegada aos problemas concretos e submissa a estratégias inteligentes – desafios brutos e – sem facilidades, que cada poeta deve traçar para si mesmo. Isso quer dizer: antes de escrever, escolher e fixar os limites da escrita. Erguer normas pessoais – inventar essas normas e depois a elas se submeter. Desenhar os limites de seu destino. Desse modo, a liberdade deixa de ser algo de que nos embebedamos, para se tornar a camisa de força que escolhemos, livremente, vestir. Não leva à embriaguez, mas à atenção. Não leva a “qualquer coisa”, mas só à precisão.

Tudo isso vale, e muito, para o contista. Escrever contos não é derramar-se, sem qualquer pudor, no caminho pantanoso das palavras. Não é soltar a imaginação e deixar que ela ferva, que entre em ebulição. Ao contrário: é criar obstáculos e objetivos, rígidos, duros, e fixar com nitidez um destino – ainda que não se chegue a realizá-lo, ainda que nunca se chegue, de fato, até ele. É conter-se. O contista, como o poeta cabralino, precisa saber onde pisa e em que direção caminha. Ainda que essas escolhas se dêem, como em geral acontece, no escuro, e sejam motivadas por razões secretas que lhe escapam, é a elas que o contista deve ser fiel. Apesar de si e apesar da própria ignorância e dos próprios limites, não recuar, não voltar atrás.

Em uma entrevista concedida nos anos 70 à Folha de S. Paulo, João Cabral argumenta: “Se a literatura é problemática é porque ela existe. No dia em que a tivermos burocratizada, com o poeta sentado em uma mesa na função de fazer versos, aí sim a literatura estará morta”. O poeta (o contista) não escreve por encomenda, ou para corresponder a padrões, ou para se adaptar a cânones. Não segue as tendências da moda como, por exemplo, a indústria do automóvel, ou os ateliês de costura. Clarice Lispector dizia: “Eu não coso para fora, eu coso para dentro”. Logo, não existem modismos, não existem manequins, não existem fitas métricas; a medição é interior.

Serão essas, de fato, escolhas que o poeta (o contista) chega a fazer? Ou, em vez disso, são apenas coisas que se impõem e que, uma vez reconhecidas como partes de sua voz, o levam a se submeter? Nesse caso, e para seguir a pista deixada por João Cabral, o contista não se submete a algo de fora, a um cânone, ou uma palavra de ordem, ou a um guru. Submete-se, antes, a si. Em outras palavras: contém-se. E só ali, naquela prisão pessoal (Cabral poderia pensar nos engradados em que se espremem as galinhas…), que ele arrisca alguns vôos. Vôos pequenos, precisos, em direções claras e com o retorno incluído. Os vôos decisivos.

Uma estratégia, sem dúvida, trabalhosa, até porque ela empurra o escritor, qualquer escritor, poeta, contista, romancista, para uma grande solidão intelectual. Em uma entrevista que concedeu nos anos 80, Cabral diz: “Sou um poeta meio marginal, que de certa forma fugiu do lirismo e do romantismo comuns na poesia brasileira”. À margem dos grandes movimentos e das grandes ondas, Cabral se isolou em seu caminho, apegou-se ferozmente a sua voz, suportou todas as conseqüências disso, e só por isso se tornou um grande poeta. A estratégia, insisto, serve também para o contista: é no aferrar-se a sua solidão, quando é fiel a si e a mais ninguém, que um contista se afirma.

Faz parte desse retorno ao essencial o apego de João Cabral não só à Espanha, mas à literatura espanhola. Cabral disse certa vez ao crítico e poeta Antonio Carlos Secchin: “A literatura espanhola usa preponderantemente o concreto e por isso me interessou. As literaturas primitivas me interessam. Parece que a linguagem começou pelas palavras concretas”. Este retorno às “coisas que são”, que Cabral cultivou na árida paisagem espanhola, é uma lição estupenda também para o contista. Também o contista pratica um gênero que tende ao compacto, e que em geral se centra em um só tempo e em uma só ação, que se prende a poucos personagens, que se aferra a uma história com a obstinação de contá-la até o fim – e mais nada. O contista, em geral (mas como é perigoso o geral!), não se interessa pelo adorno, pela divagação, pela meditação. Ele tem uma história a relatar, um relato a resolver, e escreve para resolvê-lo. Cabral recorda as literaturas primitivas – os contos de fadas, as lendas, as gestas, o cancioneiro medieval – em que o objetivo era apenas um: contar uma história. Exemplos que remetem a uma idéia decisiva: a de contenção. Conter-se: este deve ser o principal exercício de um contista. Agarrar seu projeto, ater-se a ele, restringir-se, exigindo de si mesmo nitidez e rigor.

O Exercício de Contenção que hoje proponho a você se inspira não só, nas lições de João Cabral de Melo Neto, mas também nos versos de outra grande poeta, que admiro muito, a norte-americana Marianne Moore. Uma poeta que, Cabral declarou mais de uma vez, foi decisiva em sua formação literária. São estes os versos de Marianne, que estão no fecho do poema “Silêncio”, aqui em tradução de José Antonio Arantes: “O sentimento mais profundo sempre se mostra em silêncio; não em silêncio, mas contenção”.

A palavra inglesa aqui traduzida como “contenção”, “restraint”, pode ser traduzida também por restrição, limitação, ou controle – três outras idéias que servem bastante a nosso propósito. Pois são restrição, limitação e controle que ajudam a formar não só um poeta, mas um contista.

EXERCÍCIO DE CONTENÇÃO

Antes de tudo, é bom distinguir “contenção”, ato de contender e de lutar, mas também de conter-se (reprimir-se, refrear-se), de “contensão” (= “com tensão”), isto é, grande esforço, ou grande aplicação intelectual. As duas palavras na verdade se assemelham e não só na grafia. Cabral fala na contenção, com “ç”, que vem do latim “contentione”. Ele pensa no ato de refrear-se, que se associa às idéias de moderação e de privação.

Mas contensão, com “s”, é também uma palavra que nos ajuda a pensar, sobretudo pelo aspecto da aplicação intelectual que envolve. É de esforço e de aplicação que tratamos aqui. De luta também, só que, em nosso caso, de luta consigo mesmo, luta interior, e não luta com um adversário exterior.

O exercício que proponho é simples. Com ele repito, com um pouco mais de espaço, o exercício literário proposto pelo poeta Marcelino Freire em seu Os cem menores contos brasileiros do século, lançado em 2004 pela Ateliê Editorial. Marcelino encomendou a 100 escritores um conto que tivesse no máximo 50 letras – letras, e não palavras! O resultado é espantoso. O exercício se inspira naquele que é considerado o menor conto do mundo, do guatemalteco Augusto Monterroso, relato que tem não 50, mas 37 letras: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”.

Proponho aqui um exercício um pouco mais generoso: a tarefa é escrever um conto não de 50 letras, mas de no máximo 50 palavras. Um conto, portanto, que terá, no máximo, algo em torno de quatro ou cinco linhas. Enfatizo, para evitar dúvidas, que até mesmo artigos e preposições valem como palavras nesse caso.

Oficina de Contos – José Castello – Terceira Aula

Disponível em:

http://portalliteral.com.br/oficina/oficina-de-contos

A duplicidade que se passa “para além da ficção”, como se um mistério acenasse para o leitor de fora do conto, e a perigosa fronteira entre a ficção e a vida são alguns dos temas explorados na terceira aula de José Castello.
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O escritor pernambucano Raimundo Carrero gosta de lembrar a conhecida (e aparentemente inútil) fórmula de Mário de Andrade: “Conto é tudo aquilo que a gente chama de conto”. A idéia vale também, é claro, para o romance – romance é tudo o que se chama de romance. Volto a Carrero, que é não só um grande romancista, mas também contista. Um romance como A história de Bernarda Soledade, que ele escreveu nos anos 70 e tem pouco mais de cem páginas, pode ser tomado como um conto longo. Ele mesmo admite que, num movimento inverso, seu estupendo romance Sombra severa foi, durante um bom tempo, um conto curto e depois um conto um pouco mais longo. É Carrero, ainda, quem recorda que Gilberto Freyre, cheio de dúvidas para definir seu Bernarda Soledade, safou-se inventando uma nova definição, um novo gênero: “quase novela”, ou “meia novela”.

A amplitude da fórmula criada por Mário de Andrade, se por um lado confere extrema liberdade aos contistas, de outro lhes tira a segurança e o chão. Se conto é mesmo tudo aquilo que chamamos de conto, de onde um contista deve partir? E mais: o que se espera, exatamente, que um contista escreva? É Carrero quem recorda, ainda, um dos exemplos mais dramáticos dessa fronteira quebradiça (e traiçoeira) entre os gêneros: A metamorfose, o célebre conto longo, ou novela (quase novela), ou mesmo romance breve de Franz Kafka. Pergunto: estaria Kafka interessado nesse problema quando escreveu A metamorfose?

Já disse em aula anterior que o conto, em geral (mas sei o quanto me arrisco com esse “em geral”…), se define pela concentração. Num de seus cadernos de notas, o escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904), extraordinário contista, mas também um grande dramaturgo, registra – em palavras secas e brevíssimas, como era de seu estilo – um brevíssimo episódio que lhe inspirou um conto que nunca escreveu. Ele anotou: “Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida”.

Leitor apaixonado de Tchekhov, o argentino Ricardo Piglia viu nesse episódio resumido entre cinco vírgulas a síntese – o esqueleto – de um conto clássico. “A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita”, ele afirma em seu O laboratório do escritor. Um personagem (um homem), um lugar (Monte Carlo), um destino (vai ao cassino), um evento extraordinário (ganha um milhão), uma solução (volta para casa), um desfecho inesperado (se suicida). E eis um conto.

Mas romances – mesmo os menos ortodoxos dos romances – também não poderiam se encaixar no esquema proposto por Piglia? Fracasso dos esquemas, das fórmulas prontas, das formas… Mas vamos lá. Penso em um de meus romances prediletos (na verdade, um dos livros fundamentais em minha vida de leitor): A paixão segundo G.H., o estranho romance que Clarice Lispector publicou em 1964. Arrisco-me a nele experimentar a fórmula de Tchekhov condensada por Piglia. Um personagem (G.H.), um lugar (sozinha em seu apartamento, depois de demitir a empregada), um destino (vai ao quarto de serviço), um evento extraordinário (mata uma barata e decide comê-la), uma solução (interroga-se sobre aquilo que escapa, aquilo que fica “depois de depois do pensamento”), um desfecho inesperado (experimenta uma espécie mundana de epifania, isto é, de aparição súbita do sagrado).

Piglia observa que, no episódio-síntese rascunhado por Tchekhov, aparece (como já disse em minha Aula 2) o caráter duplo dos contos. Na aparência, a história de alguém que se torna milionário não tem qualquer relação com a história de alguém que se suicida. No entanto, é o mesmo personagem quem faz as duas coisas – enriquece e, ato contínuo e imprevisto, se mata. Aqui fica claro que, sob a história que o leitor lê, em seu interior, uma trama secreta e imperceptível se desenrola – alguma coisa que confere (ou pelo menos promete conferir) um sentido ao episódio.

Não penso, contudo, só no caráter duplo que se desenrola no plano ficcional. Como na aula passada, interessa-me mais ainda a duplicidade que se passa “para além da ficção” – como se uma coisa dessas, na verdade, fosse possível! Como se, para uma ficção, houvesse “algo além”. Semana passada, falei do sentido oculto que lateja, sempre, no interior de qualquer narrativa. Alguém já reclamou que o exercício que acompanhou aquela aula, a Aula 2, que eu chamei de Exercício de Duplicação, não corresponde exatamente ao tema exposto. Talvez isso seja verdade. Em minha defesa posso dizer que essas duplicações se passam, em geral, em três planos. Primeiro, como no Exercício de Duplicação, no interior da própria narrativa. Segundo, como na exposição da Aula 2, na esfera do sentido, ou malha de sentidos ocultos que sustentam, mas também desvirtuam, uma narrativa.

Hoje venho falar de um terceiro plano: o da perigosa fronteira entre a ficção e a vida. Dito de outra maneira: a fronteira que separa (mas separa mesmo? ou mistura de modo definitivo?) a imaginação do real. É do que venho tratar hoje – e o Exercício das Metamorfoses, que passo ao fim desta aula, se refere, em particular, a esse plano. Parto não de um conto, mas de um romance, um comovente romance que acabo de ler: O filho eterno, de Cristovão Tezza. Romance? Tezza, que é pai de um rapaz com Síndrome de Down, o gentil Felipe, relata a dura história dessa paternidade – que se mistura à sua dura luta para se tornar o grande escritor que é. É uma história de forte fundo autobiográfico, mas que, apesar disso, guarda a estrutura clássica de um romance. E Tezza, ciente do fio de navalha sobre o qual o escreveu, sustenta corajosamente essa definição: romance.

Outros escritores brasileiros já fizeram experiências aparentemente parecidas. Escreveram relatos de forte estofo autobiográfico, e depois os definiram como romances. Mas não basta definir, não basta aplicar um rótulo a um livro. É preciso que o livro, ainda que tramado sobre laços biográficos, se imponha (sobretudo para o leitor que desconhece esses laços) como uma obra de ficção. Este é o caso de O filho eterno: um leitor distante, ou desatento, poderá lê-lo como pura invenção, e se convencerá de que é pura invenção mesmo. E não perderá nada do que se guarda no livro de Tezza.

Ao ler O filho eterno, pensei logo na definição que o norte-americano Truman Capote deu a seu A sangue frio: “romance de não-ficção”. Tezza, contudo, prefere chamar seu livro de “romance brutalmente autobiográfico” e, sem dúvida, com isso cunhou uma expressão talvez menos precisa, mas muito mais forte. O que nos interessa nesta aula, porém, está muito além dessas tentativas de definição de gênero que, na verdade, são sempre um tanto fracassadas. O que nos interessa é pensar que mesmo o mais experimental dos romances, o mais fantástico, o mais inverossímil deles – e não apenas aqueles que evocam a biografia ou a autobiografia – tem sempre um pé fincado no real.

Escrever é sempre distorcer, é provocar uma metamorfose – e aqui começo a explicar o exercício que proponho a vocês hoje, o Exercício das Metamorfoses. Mas é muito importante distinguir logo: distorção não é colocar máscaras, não é “tradução” de uma coisa por outra, não é disfarce. Não é tomar uma coisa por outra, fazer uma metáfora (transferência de campo semântico – raposa por uma pessoa astuta, por exemplo), ou uma metonímia (designar um objeto por outro – copo por bebida, por exemplo). Não é trabalhar com figuras de linguagem, nem é uma questão de estilo. É distorcer mesmo, e a um ponto em que já quase nada mais se reconheça. É tirar, do conhecido, o desconhecido.

Arrancar algo que, a princípio, supomos não só que não está lá, como que não poderia estar lá. Arrancar o inesperado, que nem sempre é agradável, e nunca é o que se imagina. O francês Gustave Flaubert (1821-1880, outro romancista) dizia que escrever é desvelar o “monstro” que se guarda dentro de cada um de nós. O “monstro” é um animal espantoso, assombroso; escrever ficção é, nesse sentido, lidar com o espanto e o assombro. Todo grande relato é enigmático e nos coloca diante de algo que não podemos resolver. Não porque sejamos leitores incapazes ou relapsos, mas porque não suportam mesmo uma solução. Diante do enigma nos interrogamos, e ficamos apenas com a perplexidade das perguntas. No máximo – para seguir uma idéia de Luiz Alfredo García Roza, mais um romancista – arriscamos uma decifração (como os adivinhos, os quiromantes e os leitores de bola de cristal). Quer dizer: chegamos a respostas muito precárias, provisórias e totalmente desprovidas de provas. Entramos na esfera de algo que se aproxima da crença, daí muita gente, num engano brutal, associar a invenção literária à religião.

É o checo Milan Kundera (mais um romancista…) quem nos fala do “despotismo da história”. Refere-se à crença (aqui eu prefiro pensar em superstição) segundo a qual toda ficção conta uma história, e que toda história guarda uma transposição de algum modo direta, literal, para o real. Mas a literatura se passa “além” da história. O mais importante em O filho eterno, para voltar ao livro de Cristovão Tezza, está além dos acontecimentos, e isso apesar de todo o livro girar a partir e em torno de um acontecimento atordoante, o nascimento de um filho com Down. Não fosse a maneira inteligente como Tezza relata sua história, isto é, a maneira como circunda e bordeja o real, e o livro não teria a mesma força, isso apesar da força da história que ele se empenha em contar.

Essa transposição que tende ao literal (porque, de fato, nunca chega a ele) resume, de uma forma muito precária, o trabalho de Truman Capote em A sangue frio. Um livro que tem a estrutura de um romance, mas que põe essa estrutura a serviço de uma história real, ou uma história de “não-ficção”. A serviço de uma estratégia (diríamos “jornalística”) de aproximação do mundo. Já Cristovão Tezza faz coisa bem diferente. Embora parta de um fundo autobiográfico, e não faça nenhum esforço para esconder ou disfarçar isso, Tezza trabalha sobre sua história com um conjunto de ilações, de pensamentos, de meditações que a transportam para uma esfera que vai além da autobiografia. E que, de uma forma direta, mas convincente, a distorcem – isto é, dela fazem uma ficção. A idéia de “não-ficção” só com muito esforço (talvez excessivo) cabe no livro de Tezza. Falar de um “romance brutalmente autobiográfico”, como ele mesmo sugere, é uma maneira muito mais eficiente de falar de O filho eterno.

Vocês dirão: esta é uma oficina de contos, mas você só fala de romances. Na verdade, conto e romance compartilham o grande universo da ficção. Embora tenham cânones e tradições distintos, são criações que privilegiam o imaginário e a invenção, e que só de modo muito indireto guardam alguma relação com a verdade. Mesmo num romance como O filho eterno, livro em que o impulso para a autobiografia parece submeter e guiar o autor, essa relação é complexa, não é simples, não é uma relação de equivalências, ou de traduções.

Se lemos um texto não-ficcional como a “Carta ao pai”, de Franz Kafka, longa carta que o autor checo escreveu para seu pai no ano de 1919, cinco anos antes de morrer e quando já era um homem adulto de 36 anos de idade, carta que nunca chegou a entregar (na verdade, ele a entregou à mãe, que o protegia do pai, e não ao pai!), entendemos melhor ainda o abismo obscuro de que os ficcionistas tiram suas narrativas. A literatura de Kafka, enigmática e fechada, nada tem de autobiográfica. Ao contrário: ela é uma espécie de cortina, espessa e enigmática, com que Kafka recobre e veda o acesso a si. Mas, como as cortinas, se nos escondemos atrás delas, alguma pista sempre fica: uma sombra, uma forma que se realça discretamente sob o pano, um enrugamento que denuncia uma presença. Assim também nas ficções, em todas as ficções.

Depois da leitura de Carta ao pai, a obra de Franz Kafka, toda ela, incluindo seus três grandes romances (Amérika, O castelo e O processo), pode ser lida de outra maneira – de uma perspectiva radicalmente diferente. Não, não é tão simples: a carta não “explica” a obra. Na verdade, ela nada soluciona. Em vez disso, complica e torna ainda mais intrincada a leitura da mesma obra. Numa palavra simples: enriquece-a. Ela também não é, como alguns querem crer, um conto que se disfarça em correspondência. E no entanto é uma carta que, em vez de constar dos Diários e dos textos confessionais do escritor checo, é sempre editada (e no Brasil também) lado a lado a suas grandes ficções.

Creio que raros livros representam, como Carta ao pai para Franz Kafka, esse papel chave, essa função devastadora. A rigor, toda a obra de Kafka gira em torno da mesma questão. De onde vêm as ficções? Não temos o rastro biológico para seguir, como quando perguntamos de onde vêm as crianças. Na literatura, é tudo muito mais difícil. Não existem respostas, mas só simulações de respostas. Carta ao pai é uma simulação (ou tentativa fracassada) de resposta. Contudo, guarda uma força e uma radicalidade que nos obrigam a reler toda a obra de Kafka de outra maneira.

Porque falei de Franz Kafka, é a partir dele que ofereço meu exercício de hoje.

EXERCÍCIO DAS METAMORFOSES

Leia o sonho que se segue. Ele foi anotado por Franz Kafka numa carta que escreveu a Milena Jesenská, sua namorada, em setembro de 1920. Costuma chamá-lo de “Sonho do Fogo”. A partir dele, escrevam um relato de no máximo 3 mil caracteres. Entendam bem: não peço que façam uma “adaptação” do sonho à literatura, que o romantizem, ou adornem. Peço, a vocês, em vez disso, que, a partir do sonho, por alguma via paralela ou desviante, cheguem a uma narrativa independente. A uma narrativa que – ainda que partindo do “Sonho do Fogo” – não precise do sonho para existir. Observem, ainda, que o próprio sonho de Kafka trata dos mecanismos de distorção, trata de metamorfoses.

 

“Sonho do fogo”
Franz Kafka

Ontem sonhei com você. Já quase não me lembro dos pormenores, só sei que nos transformávamos continuamente um no outro, eu era você, você era eu. Finalmente, não sei como, você pegou fogo, lembrei-me que é possível apagar o fogo com panos e assim bati em você com um velho paletó. Mas as metamorfoses recomeçaram e de repente você desaparecia, era eu que ardia e também eu que me batia com o paletó. Mas de nada adiantava, só confirmava meu velho temor de que esses métodos nada podem contra o fogo. No entretempo chegaram os bombeiros e de algum modo você foi salva. Mas agora você era diferente, fantasmagórica, como se desenhada a giz no escuro, e caiu-me nos braços sem vida, ou talvez tenha apenas desmaiado de alegria por ter sido salva. Mas ainda aqui atuava a incerteza da transformação, talvez eu mesmo tenha caído nos braços de alguém.

(Sonhos, de Franz Kafka, editora Iluminuras, página 128).