Resenha – O Nome da Rosa – Umberto Eco

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Por José Leonardo Ribeiro Nascimento

O Nome da Rosa é um livro grandioso, mal travestido (intencionalmente) de uma história de investigação. Não dá para ler sem considerar tudo que se fala e tudo que se sabe de Umberto Eco, um homem de erudição ímpar, um estudioso, amante do conhecimento, da história, da literatura. Se feita uma análise superficial, a trama de O Nome da Rosa é relativamente simples, e, ainda assim, satisfatória: no início do século XIV, um ex-inquisidor, o inglês William de Baskerville (na tradução que li, não sei por que, traduziram o nome para Guilherme), chega a uma abadia famosa na Itália, na companhia de um noviço, Adso de Melk, para investigar um assassinato (ou seria um suicídio?) de um dos monges, ocorrido no dia anterior. William de Baskerville é um gênio, observador arguto, cuja capacidade de dedução, imagino, faria inveja a Sherlock Holmes ou a Auguste Dupin, seus tatatatatataranetos a quem Eco quis, claramente, homenagear com seu primeiro livro. Ao longo de sete dias, diversos outros assassinatos acontecem, e o investigador precisa correr contra o tempo – e mostrar todos os seus dons – para descobrir quem é o responsável por aquelas mortes. Adicione a esta premissa uma biblioteca homérica, uma das maiores do mundo, construída há séculos e repleta de segredos, a começar, por exemplo, da sua arquitetura: construída no formato de um labirinto, qualquer um que tentar percorrê-la corre o risco de se perder e não mais encontrar a saída. Para aumentar ainda mais o caráter sensacional da biblioteca, somente o bibliotecário tem acesso a ela. Por meio dele os monges chegam a alguns livros, já que nem todos os volumes estão disponíveis para consulta.
Por conta desta peculiaridade da abadia, o trabalho de investigação de William de Baskerville torna-se mais complicado, uma vez que o abade proibiu seu acesso à biblioteca, e as investigações preliminares do inglês apontam justamente esta parte da abadia como epicentro de todas as tragédias que se desenrolam por ali naqueles dias.

Como eu escrevi, o rótulo “história de detetive” ou “história de investigação” pode sim ser aplicado a O Nome da Rosa, mas como se trata de um livro de Umberto Eco, há muito, muito mais.

A ambientação, por exemplo. Uma história de detetive no século XIV? Pode parecer interessante à primeira vista, mas considerando as motivações dos “culpados”, o desfecho poderia soar pouco convincente para o público do século XX, quando ele foi escrito. É neste ponto que Umberto Eco começa a “mostrar as unhas”, como dizem por aqui. Ele faz algumas escolhas narrativas ousadas, mas todas muito bem sucedidas, para evitar que lancemos um olhar anacrônico sobre o livro, o que acabaria por quebrar todo o seu encanto.

Primeiro, o narrador, Adso de Melk. Ele nos conta a história quase como se estivesse se confessando. Muitos anos depois do ocorrido, agora já um monge maduro e experimentado na fé, ele resolve relatar os fatos que vivenciou ao lado do seu mestre, fatos que nunca se apagaram da sua memória, tão marcantes foram. O tom de sua narrativa é de extrema humildade, e tenho certeza de que Umberto Eco emula a escrita dos monges piedosos daquele tempo. Ele não recorreu à saída fácil (e muito utilizada atualmente) de retratar um monge hipócrita e repleto de defeitos, sem o menor relance de qualquer qualidade que seja (e ressalto aqui que, como em qualquer tempo, a Igreja do século XIV estava povoada de numerosos exemplos de uns e de outros). Não. Adso olha para seu passado, avalia com discernimento os erros cometidos por ele mesmo, quando jovem (e não foram poucos), os erros do seu mestre, mas mantém sempre o olhar para Deus, centro e razão da sua vida (e como poderia ser diferente, se no século XIV o papel da religião era de tal importância que dele não se podia escapar? Os livros, as pinturas, a música, o trabalho, os sonhos, os estudos, enfim, tudo se fazia tendo como perspectiva Deus, seja com reta intenção, seja por motivos mesquinhos). Adso é, portanto, a primeira grande vitória de Eco no seu livro de estreia, um dos motivos para seu livro ser tão bom e um dos principais responsáveis por situar o leitor em sua época, e ver aquele mundo sem anacronismo, mas com os olhos de um monge da Idade Média. Como dizer algo diferente após ler esta reflexão de Adso?

“Os homens de outrora eram grandes e belos (agora são crianças e anões), mas esse fato é apenas um dos muitos que testemunham a desventura de um mundo que vai envelhecendo. A juventude não quer aprender mais nada, a ciência está em decadência, o mundo inteiro caminha de cabeça para baixo, cegos conduzem outros cegos e os fazem precipitar-se nos abismos, os pássaros se lançam antes de alçar voo, o asno toca lira, os bois dançam. Maria não ama mais a vida contemplativa e Marta não ama mais a vida ativa. Léa é estéril, Raquel tem olhos lúbricos, Catão frequenta os lupanares, Lucrécio vira mulher. Tudo está desviado do próprio caminho. Sejam dadas graças a Deus por eu naqueles tempos ter adquirido de meu mestre a vontade de aprender e o sentido do caminho reto, que se conserva mesmo quando o atalho é tortuoso.”

Um segundo acerto de Eco é o ritmo da narrativa. Lembrou-me, à medida que eu lia, algo imenso, gigantesco, como um elefante ou um dinossauro, iniciando uma corrida depois de um longo descanso. Os primeiros movimentos são muito lentos, talvez até desajeitados, e parece que aquele colosso não conseguirá correr, apenas mover-se muito devagar. Assim eu estava até perto do meio do livro, que é dividido por grandes seções, que representam cada dia na abadia. As seções, por sua vez, são divididas pelos momentos de oração na liturgia das horas: Laudes, terça, sexta, nona, vésperas e completas. Naquela época, considerando que não havia relógios, esta era a maneira de marcar a rotina – algo muito importante – dos mosteiros e das abadias. Eco não vai direto para um assassinato ou para uma “cena com ação”. Ele e Adso passam pela Igreja e Adso descreve, com profusão de detalhes, o que vê, encanta-se com os símbolos, com as esculturas; vão ao scriptorium, onde os monges copistas fazem seu trabalho – copiar volumes para enviar a outras bibliotecas, copiar volumes emprestados de outras bibliotecas, restaurar e fazer cópias de livros mais velhos, ler, copiar, ler, copiar… Neste lugar, Adso não perde a oportunidade de descrever como cada monge realiza seu trabalho, de que horas até que horas, por onde saem, para onde vão, de onde vieram etc. Assim, Eco vai forçando uma imersão no século XIV, para que quando as motivações aparecerem, não nos surpreendamos negativamente, achando que o livro não soou convincente. O ritmo lento, entretanto, é uma impressão falsa, como já falei. Na verdade, é um gigante que começa a correr, e quando ele finalmente está correndo, o ritmo é alucinante e eu mesmo não conseguia parar de ler até chegar à última página.

Um terceiro acerto está diretamente ligado à questão do ritmo: a existência de uma falsa subtrama que parece pouco interessante de início, mas que ganha em intensidade e importância de maneira orgânica, sem que percebamos. William de Baskerville não foi até a abadia para investigar o assassinato (ou suicídio?) do monge. Ele foi para um encontro importantíssimo na história da Igreja. Naquela época, estava em discussão o caráter da pobreza dos franciscanos e de outras ordens inspiradas no exemplo do Santo de Assis. Seria lícito aos franciscanos possuírem bens? E não possuí-los? Mais do que uma simples celeuma envolvendo o direito de haver ordens puramente mendicantes – como, aliás, viveu o próprio Francisco – estavam em jogo heresias mais sérias e, principalmente, interesses políticos que envolviam desde o papa até imperadores. Não custa lembrar que na época em que se passa o livro – ano de 1327 – a Igreja vivia a crise de Avignon, quando, por pressão da realeza francesa, o papa foi obrigado a residir em Avignon, no sul da França. Toda esta parte política é explorada com extrema habilidade por Eco. No início, eu ia lendo e pensando: aonde isso vai chegar? Mas à medida que o livro avança, vamos ver que não havia nada de subtrama. Pelo contrário, os crimes ocorridos na abadia acabam dialogando com as heresias que então se discutia.

Não dá para ler O Nome da Rosa sem ter em mente que quem o escreveu foi Umberto Eco, eu escrevi no início deste interminável texto. Apesar de eu não ter lido muita coisa dele (A misteriosa chama da Rainha Loana, Confissões de um jovem escritor, alguns dos ensaios de Seis passeios pelos bosques da ficção e ensaios soltos aqui e acolá, sei como Eco é erudito e um leitor do tipo adorador. Alguém como Jorge Luis Borges, que sempre imaginou o paraíso como algum tipo de biblioteca. Borges, aliás, é um dos grandes homenageados em O Nome da Rosa, seja pela presença terrível da biblioteca da abadia (as bibliotecas sempre foram algo muito fascinante para o escritor argentino), seja pela imagem do labirinto, também muito presente na literatura de Borges, seja também por um dos monges, um velho cego e muito sábio chamado Jorge. Fechado o parêntese sobre Borges, retorno à paixão de Eco pelos livros. Eles são a alma de O Nome da Rosa. Os livros e o que neles está escrito, o livro e o que eles escondem ou mostram, os livros e suas histórias. Vejam este diálogo entre William e Adso, longo, mas recompensador:

“…Preciso pensar sobre isso. Quem sabe tenha que ler outros livros.”
“Como assim? Para saber o que diz um livro deveis ler outros?”
“Às vezes pode-se proceder assim. Frequentemente os livros falam de outros livros. Frequentemente um livro inócuo é como uma semente, que florescerá num livro perigoso, ou, ao contrário, é o fruto doce de uma raiz amarga. Não poderia, lendo Alberto, saber o que poderia ter dito Tomás? Ou lendo Tomás saber o que tinha dito Averroes?”
“É verdade”, disse admirado. Até então pensara que todo livro falasse das coisas, humanas ou divinas, que estão fora dos livros. Percebia agora que não raro os livros falam de livros, ou seja, é como se falassem entre si. À luz dessa reflexão, a biblioteca pareceu-me ainda mais inquietante. Era então o lugar de um longo e secular sussurro, de um diálogo imperceptível entre pergaminho e pergaminho, uma coisa viva, um receptáculo de forças não domáveis por uma mente humana, tesouro de segredos emanados de muitas mentes, e sobrevividos à morte daqueles que os produziram, ou os tinham utilizado.
“Mas então”, eu disse, “de que serve esconder os livros, se pelos livros acessíveis se pode chegar aos ocultos?”
“No decorrer dos séculos não serve para nada. No arco dos anos e dos dias serve para alguma coisa. Vê como nos encontramos de fato perdidos.”
“E então uma biblioteca não é um instrumento para divulgar a verdade, mas para retardar sua aparição?” perguntei estupefato.
“Não sempre e não necessariamente. Neste caso é”.

O Nome da Rosa é um livro de muitas camadas. Você pode ler como um livro de detetives e terminar satisfeito. Pode ler como um romance histórico e também terminará feliz. Pode ler como um estudante da religião, como um amante dos livros, como um místico… É um livro que permite múltiplas abordagens, um livro que você termina sabendo que há muito ali a ser descoberto, um dos requisitos de um clássico.
Falei de tudo isso e não falei da prosa de Eco. Não sei em que escola classificá-la, falta-me conhecimento teórico para tanto, mas posso dizer que é uma delícia de se ler. Um dos momentos mais marcantes, e que constituem, para mim, as páginas mais belas e impressionantes do livro, são aquelas em que o jovem e puro Adso cai num pecado grave. Com que talento Umberto Eco descreve tudo que se passa no corpo e na mente do noviço! É realmente de tirar o fôlego, de fazer você parar a leitura, fechar o livro e soltar interiormente uma exclamação do tipo “Filho de uma égua que escreve bem!”
Com um final simbólico (não me perguntem sobre todos os significados, pois tenho certeza de que não consegui captá-los todos), O Nome da Rosa impressiona, principalmente se levarmos em consideração que foi o livro de estreia de Eco na área da ficção. Tudo bem que Eco não era um garoto, já tinha seus 48 anos, mas mesmo assim…

Minha Avaliação:
5 estrelas em 5

9 Respostas para “Resenha – O Nome da Rosa – Umberto Eco

  1. Primeiramente, parabéns pelo texto. É aquele exemplo perfeito de construção sobre a qual pensamos: é tudo que pensei sobre esse livro mas não teria palavras para expressar tão bem.

    A respeito da obra, tive o primeiro contato com ela, mas na forma de filme, durante as aulas de Idade Média, na UFS. Lembro-me vagamente de nalgum momento anterior ter tido algum contato através de algum VHS que vc mesmo locou (bons tempos), todavia não lembrava de exatamente nada da obra. Uma ou outra cena. Não me lembro nem se assisti todo o filme nessa primeira sessão. Contudo, sei que a imagem daquela abadia escura, aqueles monges estranhos, uma cena de sexo entre Adso e uma guria X me marcou. Fui procurar em seguida o livro. Comprei por 10 reais num sebo, e chegando ao final da leitura, pensei: o diretor foi extremamente competente quando conseguiu transmitir toda a sensação de estranheza, mistério e encanto que a obra do Umberto conseguiu fazer nas inúmeras páginas do seu romance.

    Nota 5 em 5.

  2. O filme marcou a minha pré-adolescência.
    Não li o livro ainda, mas tenho O PÊNDULO DE FOUCAULT, do mesmo autor,em casa. Cheguei à metade, porém abandonei: o hermetismo me assustou!
    Na Universidade,li muito o Eco semiólogo.
    E aprovei.
    Ótimo. Erudição pura!

    WPC>

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  5. Há dez anos que O Nome da Rosa está parado em minha estante. Desisti hoje de Os Maias, de Eça de Queiroz, e estava à procura de algo clássico, mas um pouco mais fácil. Sua resenha me deu bons motivos para tentar essa obra de Eco.

  6. Prezado José Leonardo, a sua resenha deste maravilhoso livro de Humberto Eco foi simplesmente fantástica. Tive oportunidade de ler este livro há uns 25 ou 30 anos atrás, e também assistir ao filme baseado nesta obra (cujo ator principal, Sean Connery, teve uma interpretação estupenda!). Realmente, o diretor do filme teve uma sensibilidade muito grande, em poder captar e transpor para as telas de cinema, toda a atmosfera e ambientação em que a história se passou!!!

  7. SPOILER.Em relação ao filme é muito sutil como ele trabalha com a dualidade dos elementos da água e do fogo, algumas cenas são totalmente fechadas no ato de lavar as mãos, ou de a água ser oferecida por aqueles que envenenam os livros. Assim é com o fogo, apenas Adso e William carregam lamparinas, o fogo é sinonimo do esclarecimento intelectual e racional, ilumina o caminho dos fransciscanos, revela as mensagens ocultas dos tradutores e copistas que contem um conhecimento pagão que supostamente colocaria em cheque alguns dogmas cristãos, além disso ele é usado tanto para queimar os dois monges que outrora se opuseram à estrutura social por meio da religião, mas ao mesmo tempo o fogo salva a pobre mulher de ser queimada, pois no exato momento de sua execução a biblioteca explode em chamas e com o caos instaurado, a partir do que eles acreditavam ser um ato sobrenatural, os camponeses tomam coragem para sublevar seus ressentimentos contra o clero.

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