Crônica da Casa Assassinada – Lúcio Cardoso

Por José Leonardo Ribeiro Nascimento

Bem que se via que a morte não era uma brincadeira, que o ser estabelecido originalmente, e toscamente modelado em barro pelas mãos de Deus, ali irrompia de todos os disfarces, para se instalar onipotente em sua essência mais verídica. Bem se via também que tudo se achava definitivamente dito entre nós. Inúteis as palavras que haviam sobrado, os afagos que não haviam sido feitos, as flores com que ainda pudéssemos adorná-la. 

Nunca havia ouvido falar de Lúcio Cardoso até que um cidadão chamado Fúria mo indicou, radiante. Crônica da Casa Assassinada e Maleita. Não deixe de ler, admoestou-me o funcionário do sebo Coquetel da Cultura, quando eu lhe pedi indicações de livros que não poderia deixar de comprar caso os encontrasse em algum sebo de Brasília.

Acabou que comprei ambos os livros novos, e a edição de Crônica da Casa Assassinada, da Civilização Brasileira, comemorativa de 50 anos, me impressionou pela imponência (e pelo volume, que indicava uma obra de fôlego).

Trata-se de um romance marcante. Fausto Wolff, que assina a orelha do livro, afirma tratar-se de um dos dez maiores romances dos últimos cem anos. Não sei o que dizer quanto a isso, mas o livro é arrebatador. Narra a história da morte da casa dos Menezes, família tradicional de Vila Velha, no interior de Minas Gerais. A história é narrada como se alguém estivesse fazendo um inquérito acerca dos fatos que levaram à ruína da família. Assim, são coletados trechos de diários, cartas e depoimentos de diversos personagens, desde integrantes da família até pessoas que interagem com os Meneses.

São três irmãos Meneses: Demétrio, Valdo e Timóteo. O primeiro, mais velho e maior defensor da tradição da família, aguardando insone a visita do Barão, é o único dos três que não tem voz. Aparece apenas sendo citado por este ou aquele personagem. Há ainda Ana, mulher de Demétrio, com suas cartas e confissões, André, filho de Valdo, o farmacêutico, o médico, o Coronel, Betty, governanta da casa, e Padre Justino, todos esses com voz dentro do romance. A cada capítulo o foco é mudado, e, numa narrativa mais ou menos linear (com exceção do primeiro capítulo), cada personagem vai dando seu ponto de vista e acrescentando informações para resolver o mistério: como Nina (sim, faltava ela, a personagem principal, a mulher de Valdo que, vinda do Rio de Janeiro, com seu jeito impetuoso e nada convencional, provoca a ruptura dos alicerces daquela família que há muito vive só de aparências.

Não há no livro personagens a se admirar pelos seus méritos. Todos são tortos, defeituosos, canhestros a seu próprio modo, e isso é um mérito incrível do autor. É incrível a quantidade de pecados que são praticados naquela casa que tem vida própria, como eles mesmos insistem em repetir.

Uma característica interessantíssima do autor é que ele muda a voz do personagem – ora é Ana escrevendo uma confissão, ora é o Padre Justino, ora um farmacêutico, um médico, Nina, mas a voz é indiscutivelmente do narrador. A linguagem é rebuscada, o estilo digressivo levado ao extremo, mas mesmo assim aquelas reflexões tão cheias de angústia e dor arrastam o leitor, prendendo-o até o último instante do romance,quando não faltam surpresas.

Como falei antes, trata-se de um livro de fôlego. Acredito que não havia lido nada parecido até hoje. Que bom.

Para terminar, um exemplo de frase perfeita, mas que não é vazia de sentido e que, como diria James Wood, não poderia ter sido escrita de maneira melhor:

No inferno deve haver um lugar à parte para os medíocres, e o próprio Satã, contemplando a presa inerte, tridente erguido, deverá indagar de si mesmo um tanto perplexo: “Que farei com isto, se até o sofrimento em sua presença diminui de intensidade?”

 

10 Respostas para “Crônica da Casa Assassinada – Lúcio Cardoso

  1. Magnífica citação final…

    Quando voltares à Universidade, pode socar esta preciosidade dentro de tua bolsa, que eu quero perder meu fôlego com ela também…

    WPC>

  2. Realmente: espetacular!!!

    Você falou sobre livro de “fôlego”, gostaria então de deixar aqui duas sugestões de leitura: Doutor Fausto, de Thomas Mann, e Os irmãos Karamasov, de Dostoievski. Excelentes e indispensáveis e de muito, muito fôlego (especialmente o primeiro). Cada autor, à sua maneira, representando no texto as fragilidades e inquietações humanas.

    Mais um para colocar na lista… Mas por enquanto, deixe-me continuar com o Schnitzler.

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